Sete –

    Max afastou a cabeça para focar o texto.

    Assim que terminou a leitura, moveu a cabeça do papel para o rosto da emanação, apontando ora para um, ora para outro.

       – Você é mesmo um fantasma – foi tudo quando “o garoto” conseguiu arrancar de si.

    Aquilo ofendeu o visitante.

       – O mesmo erro de sempre – disse com ar cansado – Não sou fantasma, sou um espírito.

    Max tapou a boca com a mão, um medo ancestral do desconhecido se manifestando com toda a força. O visitante não pareceu impressionado:

       – Você também é um espírito, idiota. Pra quê tanto drama?

       – Eu?

       – Ô se é. Um espírito encarnado… Por baixo desse suor de medo todo, existe uma alma.

       – Existe?

       – Uma só sua, na verdade. Você mesmo, caso ainda não tenha sido apresentado – afirmou com certo interesse – A questão é a seguinte, escuta que vou dizer só uma vez – continuou, dando voltas sobre si mesmo, absorto – Uma alma encarnada em um corpo é um ser humano, como você, uma alma desencarnada é um Espírito, como eu. – olhou com seriedade para Max – E esse, meu caro, é a essência do Plano Divino. Como escreveu Kardec, por sinal.

    Max se ergueu num salto, excitado com a informação.

       – Então, então, então existe vida após a morte e existe uma lógica para a existência do homem? Então eu sei quem sou, de onde vim? Eu… eu… estou travando uma conversa racional com um ser de outro plano da existência? Daquele plano da existência que… Aquele plano que…

       – Sim, sim, sim – disse o Espírito, já entediado – Isso mesmo. Daquele plano. O Lado de Lá em pessoa – e, deslizando sem nenhum constrangimento até a estante da televisão, analisou o modem da TV a cabo e o DVD player.

       – Vem cá, você não tem nenhum game?

    Max, que continuava confuso, coçando a testa machucada e buscando os significados transcendentais de um encontro dessa magnitude (um verdadeiro magnitudo), deu um pulo de entusiasmo:

       – Um espírito que até joga game!

    O Espírito se voltou para ele, sem saco nenhum por tamanha excitação, e disse com um balançar de cabeça curto, daqueles que dizem “vamos adiante nessa história”:

       – É, quanto entusiasmo. Parece que acertou na loteria…

    Max caminhou na sua direção, desta vez sem medo algum e tão à vontade que a emanação achou prudente se afastar alguns metros.

       – Você não sabe o quanto acho incrível te conhecer! – afirmou – Alguém nessa – interrompeu sua fala um instante, buscando a palavra certa para não magoar o morto – … condição de existência…

    Estendeu sua mão para frente, agora sem nenhum constrangimento, em um gesto de amizade. O visitante não conseguiu conter sua admiração pelo gesto tresloucado.

       – Até que você não é um panaca completo – disse, estendendo a mão para Max, que avançou o braço lentamente, naquele que lhe parecia o maior momento da humanidade desde o primeiro passo de Neil Armstrong sobre a lua.

 

Oito –

    Max apertou com delicadeza a energia em forma de mão humana, surpreso ao sentir peso, densidade e aspereza naquilo. Ainda sob efeito atordoante da situação, apertou com sua força máxima o visitante, constatando que a matéria reagia de forma muito parecida com uma mão viva, se compactando levemente à pressão exercida pela sua força física, embora o Espírito aparentemente não sentisse a mudança de empenho.

    Era como se, para ele, um aperto de mão vindo de uma criança ou de um peso-pesado fossem a mesma coisa, feitos da mesma falta de gravidade.

    Terminado o cumprimento, olhou para sua mão, tentando ver qualquer diferença. Imaginava que ela sumiria em uma dobra espacial ou que iria se desprender do corpo a qualquer instante, vítima de uma doença desconhecida e certamente incurável.

    Como nada disso aconteceu, pediu com licença e foi até seu escritório. Queria respostas exatas. Aquele tipo de resposta.

 

Nove –

    Voltou com uma pilha de livros nos braços. Jogou os livros no sofá e iniciou a entrevista que, para todos os efeitos práticos, era semelhante aos testes Rorschach realizados por psicólogos.

    Segurou um livro atrás do outro, mostrando sua capa para o visitante e pedindo que emitisse opiniões sobre uma boa parcela de cada religião, corrente ou doutrina religiosa e/ou filosófica existentes no mundo. Fazia sempre a mesma pergunta: “Quais professavam a verdade e quais estavam equivocadas”.

    Havia sinceridade na sua atitude. Estava realmente tomado pelo desejo de conhecer a Verdade. Infelizmente, Max ainda desconhecia que o desejo-instantâneo não é o sentimento indicado quando se busca uma Verdade. Afinal, ou se merece (fazendo por merecer) vislumbrar pedacinhos da Verdade ou nada feito. Pouco importando o tamanho do desejo. Desejo é coisa humana, é ego. Verdade é Eterna, Próspera, Imutável. O oposto completo.

    O Espírito ficou em silêncio. Max passou a levantar os livros com rapidez, achando que haveria uma manifestação quando o livro certo fosse exibido.

    O Espírito interrompeu a gincana:

       – Você quer tudo entregue de bandeja? Esse não é o jeito certo.

       – Não?

       – Posso não ser dos mais inteligentes, aliás não sou mesmo. Mas de um negócio eu sei. A busca é sua, é pessoal e é necessária. Ninguém vai fazer o trabalho por você. E tem mais: não existe o certo quando estamos falando Dele. Quem somos nós pra imaginar o que Ele sabe? Dizer o que Ele aprova?

    Max engoliu em seco.

       – Você tá falando Dele – disse, apontando o dedo indicador para cima.

       – Ele Mesmo – confirmou.

    Max ficou em silêncio, pensando na vida.

       – Tudo o que merece existir e serve para alguma coisa é preservado. Se é correto, tudo leva ao Caminho, e todos os Caminhos levam a Ele. Entendeu?

    Max apontou outra vez o dedo para cima:

       – Ele?

       – Qual é seu problema? Ele. – reagiu num crescendo de irritação que escureceu seu corpo, apagando a luminosidade acinzentada que exalava de forma mais ou menos uniforme.

       – Você O conhece, por acaso?

       – Quem você pensa que eu sou? Algum figurão?

    O Espírito empurrou os livros para o chão.

       – Tem algo mais forte em casa? Sacanagem mesmo. – perguntou, voltando a circular pela sala – Você nem imagina como é ficar/

Parou em frente a uma fotografia emoldurada de Tina.

       – Que coisinha linda. Quem é essa mulher?

 

Dez –

    Max arrancou o porta-retratos da estante e o escondeu contra o corpo.

       – Sua esposa?

    Sem intenção alguma de responder a pergunta, olhou seu relógio. A magia, o encantamento daquele encontro desaparecera. Havia uma personalidade pouco confiável, para não dizer absolutamente grosseira, invadindo seu espaço. Era hora de voltar a colocar os pés no chão.

       – Olha, preciso trabalhar.

    O Espírito o analisou curioso e colocou as mãos na cintura, esperando uma explicação decente para aquela tentativa de abandono. Max entendeu & respondeu:

       – Pra quem é Espírito, você age muito igual aos humanos, principalmente nos defeitos.

    O visitante suspirou:

       – E eu não sei? Por quê  acha que estou aqui? – mostrando outra vez o bilhete para Max – Vi só? Você tem uma missão…

       – Uma missão, eu? Absurdo. – disse dono de si – Quem sou eu pra ensinar algo a… a… (sua indecisão beirava o cômico. Por fim, encontrou a forma apropriada de nomeá-lo) a você? Você por acaso tem um interesse especial em publicidade ou design ou filmes do Woody Allen ou sobre a Amazônia?

       – Do quê você tá falando?

Max achou melhor explicar com um exemplo.

       – Uma vez tentei ensinar um tio-avô a usar o cronômetro do seu relógio. Uma luzinha acendeu no relógio e ficou sem desligar por meses, foi horrível.

    Max desabou em uma cadeira, limpando com olhar confuso o suor da cara.

       – “Já sei, foram os cogumelos. Foi o rondele. Foi o cálice de vinho”. Te liga, comida italiana não é alucinógena.

    Max olhou assombrando para o visitante.

       – Você lê pensamentos?

       – Às vezes.

       – E o que eu estou pensando agora?

       – “O que eu fiz pra merecer esse castigo”

       – É, isso mesmo – respondeu com honestidade – Você tem a resposta?

       – Uma resposta? – o visitante ponderou, como se olhasse a questão sobre um prisma absolutamente novo – Já disse, não sou um dos figurões – afirmou, parecendo pouco à vontade por renovar sua insignificância.

    O celular de Max começou a tocar.

       – Olha, tão me chamando no escritório – disse, conferindo o número.

       – E eu, faço o quê?

       – Sei lá, vá dar uma volta na Redenção ou assistir a um treino do Internacional – pigarreou, agora tinha algo de interesse pro sujeito: – Ainda existem cinemas pornôs na Júlio de Castilhos, perto do Mercado Público, se é que me entende – e antes de ver qual a reação dele, uma nova ideia tomou corpo em sua mente – Ou então…

    Então, ele descobriu. Tinha um convite a fazer. Do tipo responsável por mudar completamente a vida. Max disse:

       – Me aguarda até a noite.

    O Espírito o encarou surpreso.

       – Aceitou a tarefa?

       – Hmm, só me aguarde até a noite. Detesto tomar decisões drásticas com o mundo desabando no trabalho.

       – Vai ser chato. – respondeu, olhando Max sair.

       – Vai. Muito chato. Melhor voltar de onde veio.

O Espírito encarou Max com um olhar de vou-precisar-explicar-tudo-de-novo-seu-otário?

       – Deixa pra lá – falou e bateu a porta, sentindo-se exausto.

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