Um –
– Você está atrasado – repreendeu Ana, enquanto aguardava Max entrar no hall de entrada do Escritório de Design.
Max encarou a secretária.
– Jura?
– Muuito atrasado, Max – ela respondeu, em um acesso de irritação.
Max concordou com um constrangido aceno de cabeça.
– Você tá certa. Agora, pode mudar essa cara de “finalmente você resolveu aparecer depois de mil telefonemas”?
– O problema não sou eu, chefe. São teus sócios. – respondeu Ana, querendo colocar a questão em sua forma mais direta.
– E um mega cliente, eu sei. Que deve tá se sentindo desrespeitado.
Max passou para o corredor que levava à sala de reuniões do Escritório de Design experimentando uma dormência nas pernas. A sensação era próxima a de alguém que realizara um esforço físico brutal. Seu caminhar foi interrompido por uma pasta de documentos.
– um instantinho. Assine nas três vias, o banco precisa disso hoje. Você esqueceu na sua mesa pela manhã.
Max segurou a caneta.
– Não para de caminhar enquanto assina. E sobre a gráfica: tou aguardando o ok deles. O material tá pra chegar no meio da tarde.
Max terminou de assinar a papelada e, erguendo a cabeça, observou Ana, a garota sagaz e falante, de vinte e dois anos, dona de um cabelo espevitado e dois piercings no nariz, que trabalhava há quase um ano como secretária da diretoria e que Max só lembrava como “a garota que tomou um porre na festa de Natal dos funcionários”.
E que porre.
Ana foi a autora de um strip-tease antológico sobre a mesa de leitura do Escritório (toda construída com madeira de demolição, robusta, charmosa) que teve como grand finale sua queda-após-um-tropeço com o sutiã parcialmente retirado.
– Você é minha treinadora por acaso?
Ela retirou a pasta aberta das mãos de Max enquanto respondia:
– Às vezes. Mas você me ouviu dizer isso? Não quero ser demitida por justa-causa.
Max franziu a testa, analisando a resposta.
Ana hesitou por um instante, baixando os olhos. Havia ido longe demais?
– É um mercado em ascensão, fica tranquila – Max respondeu, piscando um olho.
Ana fechou a pasta e iniciou seu trajeto no sentido oposto ao do chefe. Levava junto com os documentos assinados um sorriso de cumplicidade.
Dois –
Max deu a si mesmo dois segundos de preparação, no corredor em frente a porta da sala de reuniões. Inspirou e expirou de olhos fechados, sem formular palavra alguma, simplesmente encheu-se de ar e esvaziou-se de tudo. Então, exibindo um sorriso jovial e bastante autêntico, entrou.
– Hermes! Quase não pego o senhor – exclamou, apertando a mão de um dos maiores clientes do Escritório, um senhor de sessenta e poucos anos, vigoroso, sempre vestindo ternos italianos.
– Quase-quase mesmo… – afirmou Roberto, emanando raiva dos olhos.
– Antes tarde do que nunca, não é isso o que diz o ditado? – retrucou Tuffon, cruzando seu olhar com Max, pleno de uma curiosidade um tanto decepcionada.
– Um imprevisto, peço desculpas.
Hermes o interrompeu.
– Ora, pedi explicações? Estamos muito bem por aqui. Não é mesmo, guris?
– Concordo. Encaminhando os finalmentes. – Tuffon respondeu.
– Os três me bajulam estando sempre presentes nas minhas visitas. Como se eu não soubesse que pequenos imprevistos fazem parte da rotina. – disse, com uma sabedoria de arrepiar.
Por um instante, seus olhos se encontraram e Max sentiu aquela certeza vinda diretamente da Intuição. Uma certeza que sussurrou: “Ele sabe. Sabe de tudo”. Hermes pareceu notar que estava sendo observando por Max. Melhor. Hermes estava plenamente certo de que Max o observava e sorriu para o designer. No instante seguinte, Max disse para si que sua desconfiança era uma grande bobagem. Então abriu um sorrisão bobo.
– Virei teu fã.
Hermes soltou uma risada agradável. Roberto interrompeu aquele momento de intimidade.
– Se Max tivesse avisado antes…
Hermes virou-se para Roberto, um tanto confuso. Estava assistindo a um duelo entre os sócios?
Roberto percebeu que havia exposto de forma pouco sutil sua hostilidade para com Max e tentou remendar:
– Você. Já. Visitou. Nossa. Hmmm… Sala de TI nova?
Tuffon e Max sentiram um crescendo de alerta enquanto ouviam Roberto construir uma sentença supostamente lógica, palavra a palavra, buscando desastradamente mudar o foco de pensamento de Hermes.
Hermes analisou Roberto um segundo. Deveria rebaixá-lo alguns pontos do seu conceito?
– Fica para a próxima, Roberto.
É. Não há dúvida. Acabara de rebaixar sua pontuação. Virou-se para Tuffon e Max:
– Queridos. Preciso ir.
Os sócios levantaram em sinal de respeito e acompanharam o cliente até a saída, dizendo palavras gentis e engraçadas. Assim que o homem se viu dentro do elevador, Tuffon e Roberto voltaram sua atenção para Max.
– Você pode dizer como foi que se atrasou tanto?
– Ele não precisa responder e você sabe disso. Quem sabe menos café e mais calma na próxima reunião?
Roberto voltou-se para Tuffon.
– Calma? É o faturamento do mês quase indo pro ralo.
– Também não exagera. – replicou Max, já desconfiando se queria escapar mesmo de uma discussão.
– Eu, exagerado? Sugiro você visitar nosso financeiro de vez em quando.
– Isso não vai mais acontecer. Aliás isso nunca tinha acontecido. O que garante uma primeira vez com certa margem de.
Roberto bufou ofendido e, conferindo às horas, deu às costas e desapareceu corredor afora. Tuffon aguardou Roberto se afastar e perguntou:
– Foi algo relacionado com a Tina? Fiquei preocupado.
Max encarou o sócio com aquele tipo de parcialidade totalmente positiva que temos com as pessoas das quais gostamos.
– Tina está ótima. O obstetra diz que o plano de saúde é quem deveria pagar uma taxa mensal pra ela.
Tuffon deu um sorriso satisfeito. Max fingiu socar o rosto do amigo, que esquivou com elegância.
Os dois pararam seus movimentos quando viram Ana os aguardando impaciente.
– Terminou a hora do recreio?
Três –
Max entrou na sua sala e desfez o sorriso caloroso. Sentou-se na cadeira, colocou os cotovelos sobre a mesa, as mãos na testa e perguntou, sentindo estar perdendo a razão:
– E agora?
A pergunta envolvia a formulação de duas questões:
E agora um: deveria ter contado a verdade – ou alguma parte da verdade para Tuffon?
E agora dois: como iria resolver a questão do defunto em seu apartamento?
Respondeu a questão E agora um imaginando uma versão alternativa para o encontro recentíssimo com Tuffon:
MAX – Tá tudo bem.
TUFFON – Ótimo, pensei que fosse um problema relacionado à Tina.
MAX – Merda, não tá nada bem…
Tuffon olharia preocupado para o amigo. Max juntaria coragem para dizer:
MAX – Sabe aquela cena do cavalo na cama do Poderoso Chefão? Foi um negócio desses que aconteceu. Por isso atrasei.
Provavelmente Tuffon responderia algo como:
TUFFON – Cara, você acaba de ganhar o prêmio Novela Mexicana por Atuação Melodramática. Situações assim não existem.
MAX – Existem. São até piores.
TUFFON – Do quê você tá falando? Ce mora num apartamento. Quinto andar. Ninguém consegue levar um cavalo morto até o quinto andar de um prédio residencial.
MAX – Eu sei, eu sei. Minha cama também não é daquele tamanho.
TUFFON – Pois é.
MAX – Tudo bem, esquece.
Max bateria no ombro do sócio de forma amigável e sairia na direção do escritório.
Quanto à questão E agora dois:
A pergunta se partia em um leque de novas dúvidas, ampliando sua insegurança. Em essência: não acreditava ter a maestria para unir em um todo coerente Tina, o Espírito, sua Missão, seu trabalho. “Antes de Buda atingir a Iluminação, debaixo da Árvore da Sabedoria, sentia-se mais ou menos assim, dessa forma como estou me sentindo?” – perguntou-se. E, como não soube responder, girou a confortável cadeira de trabalho até a janela e olhou para o céu.
A última coisa que desejaria fazer era abrir sua agenda de compromissos. O mundo iria se contrair como um olho que se fecha. E, no entanto, com um gesto lento, Max estendeu o braço para trás e, apalpando sua mesa de trabalho, encontrou-a e a trouxe para junto de si. Olhos no céu, mãos segurando a agenda. A dualidade.
Uma nuvem branca atravessou seu campo visual, flutuando com o que Max acreditou ser “presença” no meio do céu. Presença.
Estar fazendo o que se deve estar fazendo.
A nuvem ultrapassou o comprimento da janela. O céu voltou a ficar inteiramente azul.
Para onde ela iria? Qual era seu destino? Max manteve o olhar no céu, lutando para que nenhum outro pensamento viesse lhe distrair. A nuvem vagaria até desmanchar-se pelo vento, continuando sua presença no mundo, agora em frações invisíveis, ou iria ao encontro da Grande Nuvem, a Mãe Nuvem que, como imã amoroso, unifica as nuvens dispersas em uma nuvem-intensidade?
Recostou-se na cadeira e tirou os tênis debaixo da mesa, numa atitude incomum para o designer de estilo calmo e eficiente quando em seu trabalho. Bateu os olhos pela sala, observando com uma visão nova a aparência, cor e forma de cada móvel. Levantou-se e se aproximou da estante de livros de arte e design, analisando as lombadas como se fosse um leitor curioso em primeira visita a uma nova livraria.
“Pronto” – disse a si mesmo – “Agora paro de reconhecer tudo o que tinha significado em minha vida. É esse o próximo passo? Tipo um Alzheimer existencial?”.
Quatro –
Um instante se passou sem respostas. Max voltou a encarar a fileira de livros na estante. Fixou seu olhar em um grosso volume dedicado a Lucien Freud. Seus temas universais, as pessoas e suas vidas, retratados com tamanha força e estranheza sugeriam para Max, naquele momento, uma humanidade sem o conhecimento de suas possibilidades.
Seus retratos. Se suas descrições fossem verdadeiras, exibiam uma embriaguez de visão, uma noite escura e sem lua que, tomada como verdade, refletia vidas que compensavam a falta de Iluminação com mais-imperfeições perfeitamente pintadas, solicitando ao espectador um olhar de abandono. Essa foi a escolha do artista. Seu ponto de vista. Sua genialidade.
Seria a sua escolha? Veria o visitante com o olhar deformado e intenso de Lucien Freud?
Max deu um tapinha amistoso na lombada do livro. Escutou-se dizer:
– Chega. Por que não começar pelo começo? Começar pelo agora?
E, como resposta à sua Lição do Presente – Começar pelo começo. Começar pelo Agora – o telefone sobre sua mesa de trabalho tocou.
Pego de surpresa, com uma expressão de completa rendição – o olhar de “taí um negócio sincrônico pra caramba que eu não imaginei que podia acontecer”, tirou o telefone do gancho sem esforço algum.
– Max, a gráfica não conseguiu abrir o arquivo. Tão pedindo um pendrive pra não ter erro. – a voz de Ana saiu urgente e profissional.
– Tudo bem. Pode mandar.
– O Tonteira saiu pra levar o filho ao médico.
– Manda eles buscarem.
– Já fiz isso.
– Mais alguma coisa?
– E como não? – Ana respondeu, num tom de galhofa.
– Conta.
– Você não vai gostar de saber.
– Conta mesmo assim.
– Faltou água em praticamente toda a zona leste da cidade. A sugestão do dia é: usar os banheiros com parcimônia.
– A sugestão da casa acompanha fritas e refri médio?
– Não. Só um balde.
– Entendi. Acho que não vou sair da minha sala hoje.
– Ótimo pedido, chefe. A casa agradece a preferência.